Sobre o karaokê na Liberdade
Às vezes, o amor aparece cantando The Cranberries desafinadamente
🎧 Para ler ouvindo: Dreams — The Cranberries
Cena do filme Lost In Translation (2003), Sofia Coppola
Era aniversário do namorado do meu melhor amigo. Ele tinha se mudado para São Paulo bem antes de mim, que havia chegado há apenas cinco meses. Além de Bruno, meu amigo, eu conhecia sete pessoas na capital: 4 colegas do trabalho, minha vizinha de 63 anos que sempre estava procurando pelo seu gato, Chester, Edgar (o namorado de Bruno) e um carinha com quem eu dei match no Tinder. Quando Bruno avisou que o aniversário de Edgar seria em um karaokê, fiquei bem receosa, afinal, não era lá a pessoa mais desenvolta do mundo e não sabia se estava no clima de um evento social que demandasse tanta interação. Por ser nova na cidade, porém, sabia que precisava ir. Fazer amigos, networking e todas essas coisas terríveis.
Naquele dia, o meu match do Tinder, que se chamava Fábio, havia me convidado para uma cerveja depois do meu trabalho. Avisei que tinha um aniversário em um karaokê na Liberdade e ele se mostrou extremamente interessado no evento. Eu já sabia que Fábio e eu não iríamos muito longe no âmbito romântico da coisa. Ele era sensível, artístico, pisciano… Nada a ver comigo, uma pessoa extremamente direta, virginiana e que trabalhava na contabilidade de uma startup de delivery. Ainda assim, achei que não pegaria mal se o convidasse para ir comigo na festa do Edgar. Seria bom ter mais uma pessoa conhecida no meio de tantas outras. Sem surpresa, ele topou na hora.
Quando chegamos lá, nos sentamos na maior mesa, que ficava em um espaço elevado e que dava visão para todo o restaurante. Apenas umas outras três pessoas estavam no local, o que possibilitou que Bruno, Edgar, Fábio e eu pudéssemos montar nossas próprias playlists com calma. Fábio tentou pegar na minha mão e eu me esquivei timidamente. Segundo o Bruno, não foi nada sutil.
"Não, eu não vou cantar…", eu disse já tremendo de vergonha enquanto folheava o enorme cardápio de músicas.
"Vai Vic, canta comigo!", Edgar pediu, "É meu aniversário e, qualquer coisa, você só me acompanha!".
Olhei naqueles imensos olhos de hamster assustado do Edgar e consegui pensar em tudo que poderia me ocorrer após subir ao palco. No máximo eu seria humilhada por 3 minutos e, sendo franca, já sobrevivi a coisas piores. Afinal, eu só conhecia sete pessoas nessa cidade, então, ninguém realmente se importaria.
"Tá. Uma fácil. Pode escolher", disse, derrotada.
"Just can't get enough, Depeche Mode. Pode ser?", perguntou Edgar, como se já tivesse essa música na cabeça há tempos. Concordei, e então o aniversariante escreveu em um pequeno papel branco o código da música à lápis e o entregou para o garçom, que fez sinal afirmativo, como se já tivesse feito essa mesma ação inúmeras vezes.
Conforme o restaurante foi ficando cheio e os convidados de Edgar iam chegando, eu ia me soltando mais, bem como Fábio. Com o elixir da sociabilidade (também conhecido como cerveja) eu conversava com os amigos de Edgar, os amigos de Bruno e com Fábio, que também parecia engajado em fazer novas amizades e não parecia tão focado na missão romance daquela noite. O lugar já estava lotado quando o moço do microfone chamou "Edgar e Victoria" e a música apareceu na tela. Eu fiquei gelada. Dei um longo gole no meu copo de cerveja, dei a mão para Edgar e subimos juntos no palco.
"When I'm with you, baby…", Edgar começou timidamente, engrossando desnecessariamente sua voz e batendo os pés no ritmo da música. Com exceção das apresentações escolares da infância, eu nunca havia subido em um palco para nada, então, nos primeiros versos da música eu não me movia e achava que se olhasse para qualquer pessoa além do letreiro luminoso, eu me derreteria na frente de todos. Assim, ploft, era uma vez Victoria. Mas ali, naquele palco, eu tive a total experiência de um karaokê: entendi que ninguém ali estava prestando a menor atenção para meu alcance vocal, para minha afinação ou para a pronúncia do inglês capenga. Era tudo sobre animação e performance, e graças às cervejas consumidas anteriormente, consegui entregar tudo o que o público queria. Quando a música acabou, desci eufórica, como se eu fosse uma mistura de criança animada depois de comer açúcar com uma popstar. Amei a sensação de liberdade, de cantar a plenos pulmões e não me preocupar com absolutamente ninguém além de mim mesma. Nunca havia me sentido daquela forma. Suava, tremia e tinha a franja grudada na testa, mas quem se importa? Edgar me abraçou quando voltamos a nos sentar.
"Foi legal, né?", perguntou.
"Foi DEMAIS! Cadê o cardápio?", perguntei animada, já separando mais papéis brancos e ficando com um lápis na mão. Eu estava imparável.
Fábio achou bonitinha a minha euforia e tentou me dar um beijo no rosto. Como um peixe que tenta se desvencilhar das mãos humanas no aquário, me esquivei de novo, agora com a desculpa de procurar uma nova música. Eu consegui ver que ele se sentiu estranho e levemente incomodado. Era fácil ler seus pensamentos e perceber que ele havia entendido que talvez estivesse ali na qualidade de amigo (mesmo que não fizesse tanto sentido, já que nunca fomos). Também consegui ver ele ponderando a situação e dando de ombros. Fábio engatou em uma nova conversa com Bruno, que o chamou para fumar um cigarro na parte externa, e eu me senti mais tranquila. Tudo parecia bem, afinal.
Enquanto fumavam, eu continuava escolhendo minhas músicas e cantando as músicas das outras pessoas. Quando o simpático senhorzinho terminou sua canção japonesa (que obviamente eu falhei ao tentar cantar junto), um casal subiu ao palco e as primeiras notas de Dreams, do The Cranberries, começaram a tocar.
"Oh, my life is changing everyday
In every possible way
And, oh, my dreams, it's never quite as it seems"
Eu amava aquela música desde que assisti Mens@gem para Você pela primeira vez. Foram inúmeras as vezes em que, ao colocá-la nos meus fones de ouvido, me imaginei no lugar da Meg Ryan, caminhando por ruas geladas com um copo enorme de café nas mãos, em direção ao meu trabalho dos sonhos, e esperando pela mensagem de alguém também cronicamente online. Assim que ouvi as primeiras palavras da canção, pulei da mesa e fui para a frente do palco aplaudir o casal que tentava descobrir o ritmo certo da música.
"I know I've felt like this before
But now I'm feeling it even more…"
Naquele momento, eu cantava sozinha da plateia, tentando dar ao casal o público que eles precisavam. Eles não conseguiam acertar nem o ritmo, nem a letra e nem nada do tipo. A música parecia ter sido escolhida ao acaso e sem nenhum conhecimento. O homem, não muito alto, de barba loira e olhos verdes, fez sinal para que eu subisse ao palco com eles. Edgar, que via a cena de longe, simplesmente se levantou rápido da sua mesa, pegou na minha mão e subiu comigo no palco. O cara da barba loira me puxou para mais perto e dividiu o microfone comigo, enquanto Edgar dividia com a outra garota. Ele fitou meus olhos enquanto dava um sorriso que, juro por Deus, me fez tremer. E não era nervosismo do palco.
Ainda tinham bons minutos de música pela frente, mas fiquei paralisada. Balbuciava as palavras que eu sabia de cor e até repetia "oh my dreams" com o garoto, mas parecia que eu tinha entrado em uma concha onde o som ficou abafado do nada. Minhas mãos suavam, mas nada tinha a ver com timidez. Quando a música acabou, sorri para o loiro e voltei ao meu lugar. Foi nesse instante que entendi tudo.
Eu tinha me apaixonado. E não era pelo Fábio.
Algum tempo depois, alguém começou a cantar Total Eclipse of the Heart. Eu, que era nova no mundo dos karaokês, achei incrível que alguém estivesse cantando justamente aquela música, que eu tanto amava em segredo. Não tinha ideia de que já era um clássico batido, bem como Evidências, então, como se fosse algo muito fenomenal e inédito, fui fazer coro na frente do palco. Fechei os olhos ao ouvir o primeiro "turn around…" e percebi um braço em volta dos meus ombros. Meu coração acelerou quando vi que não era Fábio, nem Bruno e nem Edgar que estavam me abraçando, mas sim o loiro com quem cantei Dreams.
Sorri de um jeito idiota, tenho certeza. Fiquei no abraço dele e, juntos, cantamos alto aquela música clássica que aparentemente todas as pessoas do espaço sabiam de cor. No final, nos olhamos profundamente, e aí tive um lapso de responsabilidade afetiva e entendi que não "podia" fazer o que eu realmente gostaria. Fábio estava ali e, se fosse o contrário, eu me sentiria péssima. Então, apenas sorri de canto e voltei para minha mesa, como se estivesse dando as costas para o amor da minha vida. Eu estava bêbada, os sentimentos ficavam mesmo bem mais aflorados, acontece. Porém, Fábio não estava lá - ele tinha saído para fumar com Bruno de novo -, e o garoto loiro me seguiu e sentou-se ao meu lado.
"Oi", ele disse com um sorriso de canto. Uma mistura de fofo e convencido. Maldito.
"Oi", respondi rindo também.
Ficamos nos encarando por uns segundos até um sorriso idêntico brotar no rosto dos dois. Era como se apenas nós dois soubéssemos o que tudo aquilo (o momento, a música, o som, os cheiros e o tilintar de talheres ao redor) significava.
"Então…", o loiro começou, mas eu vi o que parecia ser a cabeça do Fábio começar a subir as escadas com Bruno e interrompi.
"Eu estou acompanhada. Desculpa", disse atropeladamente, interrompendo qualquer pensamento do garoto. Não é nenhum exagero dizer que senti que cada sílaba daquela frase rasgava minha garganta. O garoto apenas sorriu compreensivo e acenou com a cabeça, voltando para o seu lugar como um soldado abatido. Meu coração encolheu até virar um grão de arroz.
Fábio chegou tranquilo, cantando alto e rindo de alguma coisa que um dos amigos de Edgar tinha contado. Sentou ao meu lado, enquanto eu continuava trocando olhares com o outro cara. Na minha cabeça, eu estava conseguindo disfarçar perfeitamente. Quando vi que Fábio percebeu, entendi que precisávamos ter uma conversa definitiva. Mas antes, precisava assegurar que aquela pessoa com quem eu tinha tido aquela conexão louca ao som de Total Eclipse of the Heart e Dreams não sairia da minha vida. Peguei um dos papéis usados para escrever o código das músicas e coloquei meu número de telefone.
"Amanhã não estarei acompanhada. Me chama? -- Victoria"
Pedi para Bruno entregar para o garoto. Graças aos deuses, Bruno e eu temos o pacto de que amigos não julgam, então ele apenas bancou o correio elegante. O garoto loiro olhou para mim, e eu sorri abertamente, ainda fazendo o sinalzinho do telefone com os dedos polegar e mindinho. Ele leu o papel e deu risada. "Vou te chamar", disse sem emitir som. Eu concordei e disse "Vou esperar!", da mesma forma silenciosa. Vi ele guardar o papel na carteira e me fez um sinal indicando que estava indo embora. Deu um tchau tímido. Agora, estava nas mãos dele. Voltei minha atenção para o grupo de amigos que discutiam se era um bom momento para o "parabéns pra você". Antes deles chegarem a um consenso, decidi que seria o momento de conversar com Fábio. Eu sabia que ele era uma escolha amorosa racional, correta, a mais segura de todas. Mas não era a escolha que descompassava meu coração, que me deixava louca de saudade ou algo do tipo. Paixões não se planejam, acontecem. Fábio não merecia alguém que se conformasse com ele. Ele merecia alguém que o amasse desmedidamente.
Eu queria amar alguém assim. Mas não era o Fábio.
"Queria te falar uma coisa…" comecei aflita, enquanto Fábio tamborilava os dedos na mesa ao som de alguma música do Bon Jovi. Ele sorriu.
"Não precisa falar, Vic. Eu entendi e tudo bem. Mas… Não quero ficar longe de você só porque não demos certo como "alguma coisa". Podemos, de verdade, ser amigos", ele disse de um jeito doce.
Acho que se eu pudesse ter escrito a resposta do Fábio, ainda assim não teria sido tão perfeita. Então, apenas olhei no fundo dos olhos dele, grata por toda aquela sensibilidade. Fábio percebeu o quanto eu tinha ficado emocionada e beijou o topo da minha cabeça e, pela primeira vez naquela noite, me vi respirando fundo e sem nenhum peso nas costas. Finalmente tranquila, comecei a olhar tudo o que acontecia como se estivesse vendo cenas de um filme. Observei cada detalhe, para não esquecer nenhum deles. Gravei Bruno cantando Enséñame, do RBD, com Edgar. Vi os amigos se deliciando com os restos de um bolo cor-de-rosa e verde-limão; Fábio escolhendo sua próxima música, concentrado; um casal de uns 60 anos encostados um no outro, olhando aqueles dois homens gigantescos e barbudos cantando uma música melosa em espanhol. Vi as garçonetes servindo as bebidas e dançando discretamente. Vi as luzes coloridas, o letreiro ao fundo e meu celular acendendo com a melhor mensagem que eu poderia querer para encerrar a noite:
"Oi, Victoria-Karaokê.
Aqui é o Marco.
Tô te chamando 📞".